Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação Criminal nº 1003980-16.2022.8.26.0050, da Comarca de São Paulo, em que é apelante/ querelado GILBERTO MARREY FERREIRA, é apelado/querelante MARCEL SAMUEL BLECH HAMAOUI.
O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores LUIS SOARES DE MELLO (Presidente sem voto), CAMILO LÉLLIS e EDISON BRANDÃO.
São Paulo, 3 de junho de 2025. EUVALDO CHAIB, Relator
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GILBERTO MARREY FERREIRA foi condenado pelo r. Juízo da 8ª Vara Criminal - Foro Central Criminal Barra Funda da Comarca de SÃO PAU-LO, nos autos do Processo nº 1003980-16.2022.8.26.0050, sentença da lavra da eminente Juíza de Direito Dra. Cynthia Maria Sabino Bezerra Camurri, como incurso no art. 138, em concurso material com o art. 140, ambos na forma do art. 141, inciso III, todos do Código Penal, à pena de 09 (nove) meses e 10 (dez) dias de detenção, em regime aberto, e pagamento de 13 (treze) dias-multa, no valor de 1/3 (um terço) do salário vigente e, ao final, com substituição da pena privativa de liberdade por prestação pecuniária de 30 (trinta) salários em prol de entidade a ser definida na execução da pena (fls. 443/456).
O apelante foi processado porque após desentendimento em assembleia convocada por sua consorte, na condição de síndica do condomínio, defronte uma parcela de moradores, dentre os quais o ofendido Marcel Samuel Blech Hamaoui, após este se opor a recondução da síndica e opinar pela contratação de profissional remunerado para o ofício, passou a agir de forma excessivamente agressiva.
Apela, pleiteando o reconhecimento da atipicidade da conduta (fls.
471/496).
Contrariado o recurso (fls. 507/515), o douto Procurador de Justiça Dr. Milton Theodoro Guimarães Filho, opina pelo provimento do apelo (fls. 539/555).
É o relatório.
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Extrai-se da exordial a imputação de dois crimes, calúnia e injuria, em que Marcel, ora querelante, morador de unidade em edifício vertical no bairro de Moema, nesta Capital, imputa a outro morador de unidade no condomínio, Gilberto, ora querelado, os delitos acima enumerados.
Narra inicial que a esposa do querelado, Vanessa, foi síndica do condomí-nio situado na Rua Inhambu por quase uma década, mas sua administração pas-sou a ser motivo de dissenso entre moradores, grupo que se insere o querelante, notadamente por conta de instalação irregular de uma tomada para o carrega-mento de veículo elétrico, episódio que culminou com a renúncia de Vanessa, desbordando os fatos para os crimes narrados na peça vestibular.
Nessa linha, o querelado teria se referido ao querelante e seu grupo de
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apoiadores com as expressões de serem um grupo de moradores “soberbos” (56 segundos da mídia 1), “arrogantes” (57 segundos da mídia 1), que era “farsante” (12 minutos e 53 segundos da mídia 1) que “agiam com a intenção de desmora-lizar o trabalho dos funcionários do prédio” (12 minutos e 54 segundos da mídia 1), tudo isso porque ele, Marcel, havia optado pela não “reeleição de sua esposa para sindicância”. Tudo foi exposto num cenário de disputa entre dois grupos opositores e troca reciproca de provocações. Tais dizeres, na exordial, são des-critos como injúria (art. 140, CP).
Noutro ponto da assembleia, Gilberto teria se dirigido a Marcel, dizendo que o opositor estaria se lixando para o que foi aprovado em assembleia e fazen-do a seu bel prazer com que todos os moradores paguem pela sua energia, o que, em tese, poderia tipificar crime de subtração de energia elétrica, tipificando, em tal cenário, o crime de calúnia (art. 138, CP).
Pois bem.
Claramente se nota que as partes envolvidas neste processo (Marcel, mé-dico, e Gilberto, administrador de empresas), condôminos em edifício vertical localizado em área nobre desta Capital, inicialmente foram confrades, frequen-tando um a casa do outro, conforme fotos encartadas (fls. 118/119), mas a ami-zade evoluiu para uma relação marcada pela rusga e se tornou tonitruante. Há inclusive outros procedimentos em curso, versando sobre fatos diversos, um contra o outro.
O querelado, por sua vez, aduz que a exordial narra fatos de maneira dis-torcida, parciais e fora de contexto, aduzindo que os dizeres vieram em cenário onde se provou que Marcel, ao arrepio do definido em anterior assembleia (de-zembro de 2020), operou a instalação de uma tomada direta na rede coletiva do prédio, sem providenciar a captação da recarga em relógio individualizado, na forma definida pela assembleia, o que gerou custos extras para o condomínio. Destaca-se, portanto, que cada condômino poderia instalar seu ponto de energia do seu relógio para a sua vaga, de modo que o custo de energia seria custeado pelo próprio apartamento e não pela coletividade.
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Desta feita, os fatos em tela têm que ser analisados cum grano salis.
No ponto, destaca-se que a prova reunida, oral e indiciária, dá conta que as partes, querelante e querelado, migraram da condição de amigos fidalgos para inimigos figadais. Há notícia, inclusive, de vias de fato anteriormente aos fatos. Os fatos em destaque emergiram em cenário de embate sobre a instalação irregular de tomada para carregamento de veículos elétricos, porquanto Marcelo o fez ao arrepio do deliberado em anterior assembleia e sem nenhuma comuni-cação oficial à administradora do condomínio ou à então síndica Vanessa.
Conclui-se, assim, que era definido que cada condômino seria o respon-sável pelo custo da energia elétrica utilizada pelo próprio carro, por intermédio de um relógio individual, sendo que o querelante admite na exordial que “se viu
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obrigado a fazer uso da energia comum devido à incompatibilidade entre a vol-tagem do ponto de energia instalado em seu apartamento e aquela demandada por seu carro”.
Trocando em miúdos, o querelante admitiu, com a devida vênia, o fato de subtrair energia elétrica, conduta que, em tese, tem uma específica tipificação no Código Penal. O condomínio é instituição abordada no título VI, do Código Ci-vil, fazendo lei entre os condôminos o quanto decidido nas assembleias (seção II - da administração do condomínio). E, na espécie, não lhe era permitido ener-gizar o seu carro em tomada coletiva do condomínio, ainda que tenha auferido vantagem insignificante, alcançada pelo princípio da bagatela.
No ponto, o querelante contratou um eletricista para instalação da toma-da, conforme a regra condominial, mas a execução do serviço foi incorreta, com o seu aval, captando o prestador de serviço uma tomada geral do condomínio. Este fato foi admitido por Marcel, inclusive para o Daniel, engenheiro e também condômino que estava na fiscalização da obra. Portanto, não há dúvida de que a instalação foi feita de forma irregular e a conduta, em tese, tem tipificação penal expressa.
A calúnia é crime se o fato imputado não ocorreu ou quando a pessoa apontada não foi a autora, sendo punida a título de dolo, ou seja, consistente na vontade de ofender, denegrir a honra da vítima, manifestada na vontade de caluniar, sabedor da falsidade do fato imputado.
E, na espécie, o fato não era falso. Daí porque não há o crime de calúnia.
Destaca-se que a testemunha Beatriz sequer estava presente à assembleia, fazendo-se representar pelo marido. Daí porque seus dizeres não têm a mesma verossimilhança daquele que acompanhou os fatos por seus olhos e ouvidos. No entanto, tal testemunha ouviu dizer que o recorrido, ora querelante, admitiu que havia subtraído energia elétrica do condomínio para recarregar seu veículo e estava disposto da saldar o desfalque.
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O mesmo raciocínio vale para a testemunha Maria Thereza. Aliás, a de-poente aduziu que ao tempo dos fatos, pelo seu saber, apenas Marcel, que em dias de hoje, em princípio, mudou-se do condomínio, tinha veículo elétrico. Nesse contexto, a fala de Gilberto contra Marcel, a quem imputou a pecha de furtar energia elétrica do condomínio, não pode ser tida como falsa.
Deselegante, sim, ele foi, sem dúvida.
Com efeito, Gilberto, sem sombra de dúvida, poderia se manifestar de uma maneira mais urbanizada e adequada. Mas, com a devida vênia, não há calúnia, porquanto a conduta típica, definida no ordenamento, somente deixa de ser crime, após produção de prova, por construção doutrinária em que se arreda a própria tipicidade penal por política criminal, frente à pouquíssima lesividade ao bem jurídico tutelado.
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Ademais, ao tempo dos fatos, apesar da notícia trazida à baila da ausência de vulto nas despesas condominiais após o consumo da energia elétrica coletiva para o recarregamento do veículo, fato é que não se sabe se o fato é insignifi-cante ou privilegiado, ou seja, neste último quando a conduta não deixa de ser um crime.
A frase de Gilberto em desfavor de Marcel, assim, não pode ser tida como caluniosa, com a devida vênia. Incontroverso que o conflito durante a assem-bleia se deu após a confirmação de que por um erro de instalação, o querelante acabou recarregando seu carro elétrico na tomada do relógio do condomínio, assumindo, inclusive, o intento de quitar os custos desta irregularidade.
Noutra ponta, também não há falar em crime de injuria.
Tal crime requesta o dolo específico de injuriar, ou seja, imperioso o dolo específico do animus injuriandi ao se atribuir qualidades negativas ou defeitos com o fim de ofender. Não é o caso dos autos. Com efeito, a conduta do apelante ocorreu em reunião de condomínio, ambiente dificilmente pacífico, contando, ainda com ânimos exaltados e diante de uma troca de insultos e cobrança de postura do querelante ao arrepio do avençado sobre os gastos de energia.
E não é só.
Os dizeres de Gilberto erigiram em cenário de debate sobre questiona-mentos de Marcel em assembleia anterior em detrimento de sua esposa, então síndica, e demais membros do Conselho Condominial, num cenário em que havia despesas individuais de Marcel, arcadas por todos condôminos, numa at-mosfera ebuliente em recinto fechado. Daí, em tal contexto, em ebulição de ânimos e manifestamente confrontante, vieram os termos “soberbo”, “arrogan-te”, “farsante”, em relação ao comportamento de Marcel no episódio do uso indevido da energia elétrica.
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Por tais motivos, apesar da absoluta reprovação dos fatos, houve mais o intento de animus narrandi ou animus defendendi no que toca à sua esposa, Vanessa, de sorte que, com a devida vênia, ausente, por consequência, o intuito malévolo de ofender outrem. Assim, respeitadas as convicções dissonantes, os crimes contra a honra descritos na exordial não são tipificados à falta de dolo ou intenção de macular a honra alheia, ditas tais palavras em cenário ebuliente de troca de provocações.
Não se antevê tipicidade subjetiva. Com efeito, o que se tem é conflito entre dois moradores que eram íntimos, mas se tornaram desafetos, todos num quadro de desestabilização emocional pela situação de extremo estresse que adveio da reunião. No ponto, inexistiu dolo de afetar a honra do querelante, tampouco sua reputação, bradando de maneira descortês o que os demais con-dôminos impugnavam, que era o comportamento transgressor de Marcel no que toca ao definido em assembleia e o resultado da instalação irregular de tomada para recarregar seu veículo elétrico, num cenário em que se discutia como arcar
com a despesa gerada pelo apelado, ora querelante, pelo uso irregular da energia coletiva para recalibrar seu veículo elétrico.
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Em tal cenário, especialíssimo, houve animus narrandi ou animus defen-dendi, que não tipificam os crimes descritos na exordial à falta do dolo especí-fico de ofender a honra. Não se identifica palavras de ataques ao decoro com intento de ofender a honra subjetiva de alguém, mas a narração de fatos sem o ânimo de difamar (animus narrandi), máxime porque os dizeres proferidos no calor dos acontecimentos não foram reproduzidos em outros possíveis meios de comunicação (WhatsApp, por exemplo).
Destaca-se que injúria não se consuma com mera ofensa, mas quando tal tem o fim específico de atingir a dignidade (respeitabilidade, amor-próprio) ou o decoro (decência, respeito às normas morais) do indivíduo, a chamada honra interna. Desta forma, na injúria não se imputa um fato determinado, mas se for-mulam juízos de valor, exteriorizando-se qualidades negativas ou defeitos que importem menoscabo, ultraje ou vilipêndio de alguém, consumando-se com o conhecimento da imputação pela vítima.
Na espécie, os dizeres vieram em cenário de conflito, debate, insultos, de sorte que o querelado não tinha a intenção de ofender a outra parte, ou seja, de ferir sua honra e imagem, mas tão-somente externar o ponto de vista sobre fatos postos em debate e externar uma irresignação geral com o não cumprimento pelo querelante do avençado em assembleia.
Anota-se que o querelado não o intitulou de “canalha”, “ladrão” ou “ban-dido”, mas proferiu dizeres para confortar sua tese de que o querelante era quem estava ali ao arrepio da coletividade e não eram legítimos os seus múltiplos questionamentos contra Vanessa, sua esposa, então síndica do condomínio, que, em decorrência dos fatos em tela, renunciou ao ofício que exercia há quase uma década. A intenção, por parte do querelado, concentrou-se em narrar a gravida-de de qualidades do querelante com animus narrandi, o que arreda o intuito de ofender outrem.
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No ponto, até mesmo quando há uma crítica, esta não é necessariamente injuriosa. Dizer que outrem era uma pessoa que estaria agindo de forma esnobe no que toca a coletividade, sendo soberbo mesmo diante de uma infração penal em tese, adotando postura com arrogância de que o serviço já estaria feito e prenunciar que ressarciria o valor ao condomínio, são dizeres que mais se apro-ximam de uma narração em tom desacordo com a postura pessoal de outrem frente à coletividade, no ponto, os condôminos e não uma específica e direta ofensa a dignidade e decoro do querelante.
Infelizmente, manifestações exaltadas de condôminos com interesses opostos em suas assembleias vêm crescendo, quando, em reuniões desta na-tureza, deveria imperar o bom senso, a razão e, notadamente, a cordialidade e urbanidade no trato pessoal. Marcel, sabidamente, usou uma tomada geral do
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condomínio, admitiu o erro e se comprometeu a devolver o valor assenhoreado. Gilberto manifestou-se de forma deselegante, rude, inconformado com a situa-ção e abalado pelo tratamento que sua esposa havia recebido na condição de sín-dica. O comportamento reprovável de Geraldo foi infeliz, indelicado, grosseiro, mas com todas as vênias, não alcançou a seara penal.
Os fatos são lamentáveis. Com efeito, os dizeres vieram em cenário em que Vanessa discutiu com grupo de moradores, ele intervindo deselegantemente em prol da mulher que acabara de renunciar ao ofício em decorrência dos deba-tes acalorados quando se verificou o uso de energia do condomínio por Marcel, ora querelante, gerando custos extras para os demais moradores.
Frente ao explicitado, o dolo somente se dá com a efetiva consciência (e vontade), por parte do querelado, em atribuir ao querelante a conduta de furto de energia elétrica, sabendo ser tal conduta não verdadeira. Não é a hipótese, sen-do, portanto, atípica a conduta. Noutra ponta, não houve injúria à falta do dolo específico, mas mero animus narrandi e animus defendendi à luz de irregulari-dade perpetrada pelo querelante, onde o querelado se apoderou de termos hostis, mas sem a intenção de provocar ofensa, de sorte que imperioso a inversão do resultado da origem.
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Diante do exposto, pelo meu voto, dá-se provimento ao recurso de GIL-BERTO MARREY FERREIRA para absolvê-lo dos crimes descritos na queixa-crime, com fundamento no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal.